O sangue que banha as mãos da mídia

Domingo, 19 Outubro, 2008 in De jornalista para jornalista, Debate, O leitor não entende | Tags: Eloá, imprensa, jornalismo, journalism, Lindemberg, media, mundo-cão, Nayara, press, sensacionalismo, sensationalism, seqüestro | 2 comments

Como outros aqui, acompanhei de alguma forma o seqüestro e cárcere privado das meninas Eloá e Nayara. Diríamos que acompanhei de maneira passiva, pois evitei ao máximo ver qualquer notícia a respeito, para não me sentir cúmplice do show de horror que os meios de comunicação promoveram.

Dá para considerar sim a mídia como cúmplice da situação. Acabaram fazendo muito do que o Lindemberg queria. Disse Nayara à polícia que o tal ex-namorado dizia que era o cara, que era o príncipe do gueto, que os policiais tinham medo dele e por aí vai.

Porém, não irei falar tanto sobre o seqüestro em si, apenas esperando que o tal Lindemberg receba uma justiça digna de tal nome e sem chicanas como as que fazem Pimenta Neves estar condenado por homicídio doloso e ainda em liberdade. Também não comentarei a respeito da postura da polícia, que considerei das piores possíveis, ainda mais pensando que haviam conseguido libertar uma das reféns e a devolveram para o seqüestrador. Isso para não falar das inúmeras oportunidades que tiveram em muitas horas de cárcere privado de prender o cara e libertar as duas garotas sem ferimentos. Falarei isso sim da postura da imprensa em geral no tal caso.

Quem ainda não assistiu a “Montanha dos Sete Abutres”, que assista e veja Kirk Douglas em ótima forma. E um pouco dessa montanha foi parar em Santo André na semana que passou. Vimos de tudo um pouco em matéria de absurdos. Que tal entrevistar o seqüestrador? Pois é o que fizeram. E que tal falar que a polícia se dirigia ao lugar? Também tivemos isso. Alguém aqui duvida que o Lindemberg estava assistindo aos vários canais que noticiavam quase em tempo real a tal mazela?

Isso não se faz. E o pior de tudo é que trataram aos espectadores como idiotas. Acharam que vocês eram feras sedentas por sangue, quando não duvido que no círculo social de cada um que lê esta postagem, uma porrada de pessoas tenha achado simplesmente horrorizante e doentio o que repórteres e apresentadores de programas noticiosos fizeram. E mesmo o mais ignaro teve seu senso de humanidade acionado ao notar o que queriam fazer com aquelas duas meninas.

Eloá teve morte cerebral, mas é possível que nas mais de 100 horas de horror a que foi submetida, tenha notado que virou não “superstar do Notícias Populares” (Racionais), mas sim de uma série de meios que há vezes em que pensamos se o extinto espreme-que-sai-sangue não chegava a ser mais leve que aquilo que um coletivo de canais fez.

Vale lembrar que uma série de artigos existe no Código de Ética dos Jornalistas e que somos obrigados a levar em conta quando vemos tal espetacularização de algo que podia ter tido desfecho melhor. Seguem alguns, com seus devidos comentários:

Art. 6º É dever do jornalista:

II - divulgar os fatos e as informações de interesse público;

VIII - respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão;

XI - defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias;

Será mesmo que era de interesse tão público assim divulgar informações que ajudassem ao tal Lindemberg a se planejar? A quem interessaria saber que a polícia se dirigia ao local do crime? Creio que só mesmo a quem o perpetrava.

E a intimidade, a privacidade, a honra e a imagem de Eloá e Nayara, foram mesmo corretamente preservadas? Quantos comentários ouvimos a respeito da diferença de idade entre a hoje morta e seu ex-namorado? Foram comentários de pessoas que nunca viram a hoje morta mais gorda ou mais magra e que, mesmo que ela tenha sido refém, na prática o ocorrido não afetará diretamente suas vidas.

Eis que vimos também duas adolescentes de 15 anos (aqui, portanto, temos duas condições se cruzando) tendo suas vidas devassadas pela imprensa. Foi mesmo preciso saber que Eloá, quando aos 12 anos, namorava um cara de 20? O que muita gente deve ter pensado a respeito disso? Com certeza coisas não muito honrosas. E o que dizer da contínua divulgação do nome e da imagem das duas vítimas? Nayara sobreviveu, mas que ninguém duvide que ela precisará de um belo tratamento, tanto médico quanto psicológico, para tentar lidar com tudo a que foi submetida. Poderá andar pelas ruas e algo mais chamará a atenção que a marca da bala que recebeu. Onde quer que esteja, alguém lembrará dela como a garota que foi vítima do tal Lindemberg. Isso para não falarmos de comentários maliciosos a respeito de sua libertação e volta ao cárcere. Também não podemos esquecer que alguns inclusive se perguntam se não houve violação do Estatuto da Criança e do Adolescente a respeito disso tudo.

Segue mais um artigo:

Art. 7º O jornalista não pode:

IV - expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação, mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicação de locais de trabalho ou residência, ou quaisquer outros sinais;

V - usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime;

Preciso mesmo comentar alguma coisa a esse respeito? Porém, deixarei aqui um parágrafo do mesmo artigo para que pensem se ocorreu ou não durante todo esse espetáculo dantesco:

IX - valer-se da condição de jornalista para obter vantagens pessoais.

Aqui também se articula com o que está acima uma parte do próximo artigo:

Art. 11. O jornalista não pode divulgar informações:

I - visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica;

II - de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes;

Que ninguém aqui duvide que aqueles que falam “mas essa vaca não vai chorar?” durante programas do tipo “Esta é sua vida” tenham tido o mesmo tipo de “sensibilidade” quando do caso de Santo André. Aliás, meus caros, gente que, se não fosse comunicador, seria serial killer, é coisa que tem bastante na comunicação social. Pois é, uma comunicação que deveria ser social, está virando comunicação sociopata.
E seguem mais um artigo para que pensem:

Art. 13. A cláusula de consciência é um direito do jornalista, podendo o profissional se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam as suas convicções.

Parágrafo único. Esta disposição não pode ser usada como argumento, motivo ou desculpa para que o jornalista deixe de ouvir pessoas com opiniões divergentes das suas.

Fico aqui pensando sobre quantos foram cobrir a tal morbidez contra suas vontades, indo lá apenas porque se não fossem, seriam demitidos e, pior ainda, correriam o risco de nunca mais serem contratados por quem quer que fosse.

Aliás, este ano que se encaminha para o fim foi pródigo truth about enzyte no que considero mau uso da mídia. Já comentei aqui sobre o caso Isabella e agora temos aqui o caso de Santo André. Também me pergunto sobre quantos mais Lindembergs teremos daqui para diante. E sobre quantos comportamentos de manada da mídia teremos.
Devagar com o andor

Sexta-Feira, 26 Setembro, 2008 in Debate, Textos livres | Tags: journalism, blog, jornalismo, press, imprensa, mídia, media, blogging | 4 comments

Ando notando em alguns uma certa euforia para com a onda de blogs. Alguns dizem ser o futuro da notícia. Outros falam que a partir de agora, todo mundo é jornalista, entre outras.

Ouço essas coisas com o maior dos respeitos, até porque vem de gente com quem me dou bem. Porém, não posso deixar de achar que há aqui uma euforia equivalente àquela de quem achava que a TV iria acabar com o rádio e o cinema, entre outras assemelhadas.

Sinto muito, mas isso não vai acontecer. Assim como você continua indo ao cinema, ouve seu radinho e lê seu jornal, os jornalistas continuarão sendo jornalistas e para chegar longe, terão de comer muito feijão, estudar um bocado e agir jornalisticamente. E jornalistas poderão ser blogueiros, bem como a maioria absolutíssima dos blogueiros não é nem nunca será jornalista.

Um dos motivos é simples: o agir blogueiro difere do agir jornalístico. Por mais que se tente agir jornalisticamente, o grau de opinionismo por aqui é maior, porque blogs são mesmo opinativos por essência. Quem lê este blog o lê porque espera aqui ver aquilo que penso a respeito de algo. Mesmo que eu noticie algo aqui (como da vez em que cobri o Salão Nacional do Jornalista Escritor), já está subentendido que mesmo que se tente ser isento, é aquilo que penso e em um viés que no sentido jornalístico estrito, estaria mais para uma coluna do que para uma matéria.

Vejo a polêmica sobre o diploma, mas vejo também que um esquecimento do ciclo de vida das profissões, o quanto que elas evoluem e o quanto de saber específico elas passam a exigir. Olhem para os dentes de algum urbanóide pela casa dos 60 a 70 anos e vejam o que o dentista prático fez em sua arcada. Compare agora com a média dos dentes de quem foi cuidado por algum portador de número do CFO mais recente.

Concursos públicos vêm ganhando importância na absorção da mão-de-obra de nossa profissão. E para assumir o cargo neles disputado, é preciso ter diploma e registro. Diga “eu tenho um blog” na hora de assumir o cargo e verá as pessoas de lá contendo os risos para não ficar ridículo para seu lado. E olha que muitos dos cargos de concursos são bons cargos, dos mais construtivos e daqueles que você teria orgulho de desempenhar.

Recentemente, tivemos séries muito boas em blogs, como a que Luís Nassif vem conduzindo sobre a Veja e que antes da Satiagraha estourar, já havia cantado muitas bolas. Porém, nunca se esqueça que por lá está sim o jornalista Luís Nassif, mas também o blogueiro, que vai acabar em algum momento deixando algo que revela o tal viés opinativo mais forte dos blogs. Se bem que no caso dele, ele chega a separar o que é notícia puro-sangue do que é blogagem, permitindo que a pessoa vá com a cabeça já preparada para ver o que é o que, ainda que aquela ressalva mental tenha de ser acionada sempre que virmos algo que é blog.

Fala-se do tal “jornalismo cidadão”, mas alguns se esquecem que as tais contribuições são feitas por pessoas que não têm o jornalismo como atividade-fim. Portanto, é de se esperar que não haja o mesmo comprometimento com a qualidade da dita cuja, por mais bem apurada que seja. Comprometimento, no caso, entenda-se de estar permanentemente voltado para o ato de noticiar de maneira isenta, uma vez que disso se vive. Ou alguém aqui de sã consciência vai imaginar que um “jornalista cidadão” que por um acaso seja médico vai largar um paciente no meio de uma cirurgia para atender ao celular e anotar atentamente tudo que a fonte fala em um bloquinho? Com certeza não. Noto aqui, no máximo, um ligeiro paralelo com os cinegrafistas amadores. Vide a história da Favela Naval: o cara flagrou os PMs dando porrada em cidadãos, mas quem foi lá apurar a história foram os jornalistas. Lá foram eles ouvirem os muitos lados, lá foram eles se dedicar ao assunto. Já o cinegrafista amador, não é de se imaginar que extraia seu sustento de fazer imagens em contexto jornalístico, como faria um videorrepórter.

Blogs são fontes de informação? Sim, assim como placas de trânsito, jornais, vizinhas fofoqueiras e cães que te arrastam para ver algo que lhes chamou a atenção. A grande diferença é sobre o que é a informação jornalística. Essa tem cara bem definida e, assim como em qualquer outro ofício, temos os bons e os maus, com a diferença que os maus conseguem prejudicar alguém em espectro muito mais amplo que o da fofoca da vizinha. Alguns de cara irão se lembrar da Escola Base e o massacre a que foram submetidos os envolvidos. Porém, os mais antigos irão se lembrar de uma gama de casos muito mais ampla, daquelas que fará qualquer um agradecer aos céus de os tempos românticos do jornalismo não mais existirem, ao que sugerirei a leitura de Cobras Criadas, livro de Luiz Maklouf Carvalho que fala de David Nasser, mas também de certos aspectos daquele jornalismo.

Portanto, informe-se nos blogs, mas não ache que alguém que escreve um blog é jornalista pelo fato de escrever blog. Porém, lembre que o blog demanda paciência de quem o lê, não pode ser transportado para lá e para cá, não tem a infra-estrutura de uma empresa jornalística (quem nem grande precisa ser) e por aí vai. Não ache que isto aqui é presumivelmente isento até que se prove o contrário. Nem os blogueiros acham. E também não ache que os blogs balançarão a roseira a ponto de qualquer pessoa poder ser considerada jornalista.

Deixo-os com este link para que pensem um pouco. Link esse que já levantou uma bela polêmica na blogosfera.